Marefasto desmonta silêncios e entrega um dos romances mais potentes do ano

Depois de concluir a leitura, compartilho a experiência de atravessar uma obra que transforma dor familiar, introspecção e silêncio em literatura de altíssimo impacto.

Acabei de fechar Marefasto e, antes mesmo de recobrar totalmente o fôlego, senti a necessidade quase urgente de registrar minhas impressões. Há livros que nos acompanham; outros, porém, atravessam, e Marefasto pertence a essa segunda espécie. Não é uma leitura que se encerra com a última página; é uma experiência que se infiltra, silenciosa, nos lugares mais íntimos da memória e da sensibilidade.

Juan Glavemburgo constrói uma narrativa que, à primeira vista, poderia soar simples: cinco dias em que um adolescente de quinze anos se tranca no quarto, recusando comida e água, enquanto sua mãe, do lado de fora, tenta compreender esse gesto extremo. Mas nada em Marefasto é simples. A clausura física é apenas a porta de entrada para uma clausura maior, a emocional. O livro opera no limite entre a contenção e a explosão, entre aquilo que é dito e aquilo que permanece como silêncio carregado, um silêncio que pesa mais do que qualquer fala.

O romance se sustenta em dois pontos de vista que se intercalam, revelando um mosaico delicado de dores familiares. O adolescente narra a partir de um lugar de introspecção amarga, onde cada pensamento parece ecoar dentro de uma caixa fechada. A mãe, por sua vez, é o retrato da exaustão afetiva de quem tenta costurar fragmentos de convivência mesmo quando já perdeu quase todos os fios. A alternância cria uma tensão constante: dois mundos separados por uma porta de madeira, mas dividindo a mesma tempestade emocional, o mesmo marefasto que dá título ao livro e ao clima narrativo.

O mérito literário de Glavemburgo está em transformar essa espiral afetiva em estética. A linguagem é lapidada, poética sem ser arrebatada, dura sem perder ternura. Cada frase parece construída com o cuidado de quem compreende que uma palavra fora do lugar pode comprometer a emoção que se quer transmitir. Há uma contenção que aproxima o livro de autores como Raduan Nassar, mas com um frescor narrativo próprio das vozes contemporâneas da nova literatura brasileira.

O enredo avança como quem pisa em terreno movediço: lento, tenso, sempre instável. Essa lentidão não é um defeito; é o próprio método do livro. Ao acompanhar a abstinência física do garoto, o leitor também vai sendo privado de certezas. Não sabemos exatamente o que o levou a se trancar, nem o que o sustenta naquela recusa radical. A cada página, a sensação é de caminhar dentro de uma névoa carregada de sentimentos que ficaram anos sem nome.

Há também uma dimensão simbólica muito forte. A clausura do jovem não é apenas um gesto dramático; é uma metáfora das fissuras sociais e familiares de um Brasil que, muitas vezes, não sabe lidar com suas próprias dores. A mãe representa uma geração inteira que aprendeu a amar no escuro, tateando. Cada capítulo funciona como um lembrete de que quase sempre nos relacionamos com os outros de maneira imperfeita, mas seguimos tentando.

Marefasto é um romance que exige entrega. Não é feito para consumo rápido. Pede pausa, respiração, presença. Em troca, oferece uma humanidade rara. Diferente de muitas narrativas juvenis, não infantiliza o leitor, não se preocupa em explicar demais e não tenta suavizar aquilo que é intrinsecamente duro. É honesto, brutalmente honesto, ao colocar a culpa, o desamparo e a busca por reconciliação no centro da história.

Foi essa honestidade que mais me marcou. Há trechos que parecem escritos com a coragem de quem entende que algumas verdades só existem quando verbalizadas. Outras permanecem sugeridas, como se o autor soubesse que cada leitor carrega seus próprios quartos fechados, seus silêncios, seus marefastos internos.

Compreendo perfeitamente por que o livro chegou à final do Prêmio Jabuti. Não apenas pela qualidade literária inegável, mas pela relevância emocional e humana. Marefasto é um daqueles romances que alcançam leitores de diferentes idades e experiências porque trata de algo universal: o abismo que às vezes se abre entre pessoas que se amam e o esforço, muitas vezes falho, de construir pontes sobre esse abismo.

Ao terminar a leitura, percebi que não era apenas o adolescente que estava trancado ali dentro. Todos nós, em algum momento da vida, já ocupamos aquele quarto ou aquela sala do lado de fora. Talvez seja por isso que o livro reverbera tanto.

Marefasto não é apenas um romance. É um espelho. E, como todo espelho verdadeiro, não nos poupa.

Ficha técnica

  • Título : Marefasto
  • Autor : Juan Glavemburgo (Juan Glavemburgo Santos Bacelar Brito)
  • Editora : Selo Voe | Editora Flyve
  • Ano de publicação : 2024
  • Páginas : 190 páginas
  • Formato : 14 × 21 cm, papel amarelado
  • ISBN-13 : 978-6500952155
  • Classificação etária : 16+
  • Gênero/Categoria : Drama / Romance Psicológico

Segue também o link para compra na editora: Flyve – Página de Marefasto

Cristiano Alves

É escritor, jornalista e estrategista de comunicação. Atua na criação de narrativas de ficção noir e conteúdos jornalísticos para veículos regionais, além de desenvolver projetos especiais de branding, campanhas institucionais e marketing político. Com escrita precisa e atmosfera densa, transita entre literatura, jornalismo e comunicação estratégica, unindo técnica, impacto e visão narrativa.

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